segunda-feira, setembro 08, 2003
PISTAS
O JPN deixou na caixa de comentários a sugestão para que dê “aos que não conhecem tão bem a obra de Virgílio Martinho, mais indicações sobre a fusão dos textos.” Caro Joaquim, o que proponho aqui – talvez não tenha explicado bem – é, justamente, um jogo (entre outras coisas). Um jogo com poucas regras, um tanto maleáveis - se tal é permitido num jogo. Temos um conjunto de materiais (lista no post abaixo); ideias que estão apresentadas, algumas, outras que nascem aqui à vista de todos; vozes terceiras que vão aparecendo e imiscuindo-se no(s) texto(s) que, aqui está a tal maleabilidade, podem vir de qualquer parte pela vontade de cada um; pedaços de textos do VM (que hão-de crescer, até agora não mais que umas breves citações); uma cena completa (está quase a aparecer outra); breves reflexões sobre o processo (ou, se quiserem, sobre o jogo e o modo de o ir jogando e inventando regras à medida que se desenrola...); tudo o que aqui não está nem pode estar; e ainda: desabafos, manias...
Suponho que tudo isto está um bocado armadilhado, não sei bem. Também não sei se não acabarei a escrever sozinho noite fora e com o zumbido das dúvidas inaudível para os vizinhos. Não sei. Quis (quero) experimentar isto. O que antes supunha saber e que de certo modo tenho agora confirmado, é que, por várias razões, o retorno nunca seria muito forte. Mas tinha a secreta esperança que não fosse quase inexistente... “Paciência”, já dizia a minha filha quando tinha 3 anos.
Suponho que tudo isto está um bocado armadilhado, não sei bem. Também não sei se não acabarei a escrever sozinho noite fora e com o zumbido das dúvidas inaudível para os vizinhos. Não sei. Quis (quero) experimentar isto. O que antes supunha saber e que de certo modo tenho agora confirmado, é que, por várias razões, o retorno nunca seria muito forte. Mas tinha a secreta esperança que não fosse quase inexistente... “Paciência”, já dizia a minha filha quando tinha 3 anos.
domingo, setembro 07, 2003
INVENTAR
Vai ganhando consistência: o Virgílio “em cena” em diferentes “tempos” e “acontecimentos“, desdobrando-se, inventando vidas - as suas e as que vamos vendo desfiarem-se perante os nossos sentidos.
Tópicos: a idealização da boémia marginal/intelectual (Rainhas Cláudias ao Domingo); o sonho revolucionário e a companheira “ideal” (O Grande Cidadão); a prisão – “real” (Concerto das Buzinas); a infância e a família – “pai ferroviário e mãe a condizer”: Vitor Silva Tavares (Relógio de Cuco). E o que mais se verá nos próximos “capítulos”.
Tópicos: a idealização da boémia marginal/intelectual (Rainhas Cláudias ao Domingo); o sonho revolucionário e a companheira “ideal” (O Grande Cidadão); a prisão – “real” (Concerto das Buzinas); a infância e a família – “pai ferroviário e mãe a condizer”: Vitor Silva Tavares (Relógio de Cuco). E o que mais se verá nos próximos “capítulos”.
quinta-feira, setembro 04, 2003
ESCREVER
João Lopes (DN, 5 de Agosto de 2000), cita um trecho de Le Siècle de Sartre, de Bernard-Henri Lévy):
«(...) É preciso medir bem esse crime primordial que é o acto de escrever. É preciso ver esse escritor nascente como uma espécie de animal literário a escavar o seu buraco, quase o seu retiro, no interior da obra dos outros (...).»
«(...) É preciso medir bem esse crime primordial que é o acto de escrever. É preciso ver esse escritor nascente como uma espécie de animal literário a escavar o seu buraco, quase o seu retiro, no interior da obra dos outros (...).»
quarta-feira, setembro 03, 2003
ESCREVO HOJE E INVENTO-ME
Sei, escrevo hoje e invento-me, estou presente no emaranhado das coisas da memória.
Virgílio Martinho, Relógio de cuco, p. 50
À medida que escrevo (esta e muitas outras coisas), vou descobrindo a minha escrita: respostas a estímulos e armadilhas, impregnação de intuições, negociação (invenção) com a memória, habilidades (mais ou menos conscientes); e manias, feridas, desejos, imagens, delírios, obscuridades, invenções, cadências (respiração), resguardos de cobardias, assomos de coragem: se quiserem: «escrevo hoje e invento-me».
Tenho horror a “personagens” e “didascálias” (excepção feita para os textos radicalmente didascálicos). As primeiras: muitas das dramaturgias e análises dramatúrgicas contemporâneas constróem vidas fora da matéria teatral – para mim, a existir essa coisa chamada vida (real/ficcional), ela faz-se do confronto entre a matéria “actor/performer” e a “palavra” na arena cénica; as segundas: muletas que tentam obviar a ausência de corporeidade da palavra, remendos de performatividade – arrepio-me da mesma forma quando leio “explicações” de poemas... A minha escrita para teatro procura manter à distância este ”horror”. Esta convicção é uma das minhas “verdades” (acho que já tenho idade e vida feita para me permitir inventar umas quantas...).
Sempre que nos meus textos para teatro escrever “personagem” leia-se “uma vida em forma de palavras”. Parece o mesmo mas não é.
“Didascálias”: também cometo os meus pecados... Mas gostava que fossem entendidas como fraquezas inerentes ao fatídico “processo de comunicação”...
Gostaria que os meus textos para teatro fossem tão só lampejos de palavras em corpos vivos. Fulgurações. Imagens. Caleidoscópios de palavras em eterna recomposição (tentativa em Os Nomes que faltam; novas experiências em Restos. Interiores e Aquitanta...). Mas há sempre o tal problema da “comunicação”...
Virgílio Martinho, Relógio de cuco, p. 50
À medida que escrevo (esta e muitas outras coisas), vou descobrindo a minha escrita: respostas a estímulos e armadilhas, impregnação de intuições, negociação (invenção) com a memória, habilidades (mais ou menos conscientes); e manias, feridas, desejos, imagens, delírios, obscuridades, invenções, cadências (respiração), resguardos de cobardias, assomos de coragem: se quiserem: «escrevo hoje e invento-me».
Tenho horror a “personagens” e “didascálias” (excepção feita para os textos radicalmente didascálicos). As primeiras: muitas das dramaturgias e análises dramatúrgicas contemporâneas constróem vidas fora da matéria teatral – para mim, a existir essa coisa chamada vida (real/ficcional), ela faz-se do confronto entre a matéria “actor/performer” e a “palavra” na arena cénica; as segundas: muletas que tentam obviar a ausência de corporeidade da palavra, remendos de performatividade – arrepio-me da mesma forma quando leio “explicações” de poemas... A minha escrita para teatro procura manter à distância este ”horror”. Esta convicção é uma das minhas “verdades” (acho que já tenho idade e vida feita para me permitir inventar umas quantas...).
Sempre que nos meus textos para teatro escrever “personagem” leia-se “uma vida em forma de palavras”. Parece o mesmo mas não é.
“Didascálias”: também cometo os meus pecados... Mas gostava que fossem entendidas como fraquezas inerentes ao fatídico “processo de comunicação”...
Gostaria que os meus textos para teatro fossem tão só lampejos de palavras em corpos vivos. Fulgurações. Imagens. Caleidoscópios de palavras em eterna recomposição (tentativa em Os Nomes que faltam; novas experiências em Restos. Interiores e Aquitanta...). Mas há sempre o tal problema da “comunicação”...
terça-feira, setembro 02, 2003
JÁ PENSEI NUMA VIDENTE...
Esta Alquimia que procuro escrever – à vista de todos – funciona para mim um pouco como se fosse uma encomenda. Tento explicar: há coisa de ano e meio, a Joana Fartaria teve uma possibilidade de encenar um texto meu em Almada; depois de algumas conversas, sugeri-lhe escrever qualquer coisa sobre o Virgílio e ela disse que sim. O projecto não avançou imediatamente e pouco tempo depois, e com pouco trabalho feito, deixei de pensar no assunto. Em Junho deste ano, fui desafiado, com outros dramaturgos, a participar numa iniciativa de leitura de textos para teatro inéditos [vide infra]; como não tinha nada em estado de ser mostrado, peguei no conto Rainhas Cláudias ao Domingo e criei uma cena longa, cerca de 15 minutos [vide infra], que acabou por ser o ponto de partida desta aventura que agora partilho com interessados e simples curiosos. Mas o que quero destacar é que o impulso inicial funcionou para mim como uma encomenda de terceiros (além do mais, tinha, como hoje, já lá irei, um elenco concreto para o qual deveria escrever). Agora, de novo com a Joana, surge um certo “tom” de encomenda: temos um projecto comum para criar alguns espectáculos e o Alquimia, que já tem “adeptos”... é mesmo para se fazer nas “tábuas”. Resumindo, que isto já vai longo: o texto não me surge como o produto do meu lento processo de imbricação de ideias e materiais mas como uma meta que devo atingir, tendo como ponto de partida apenas... um nome. É evidente que não é um nome qualquer (como está agora a acontecer-me por via de uma encomenda “a sério”, depois contarei), o Virgílio foi meu amigo, gosto imenso de algumas coisas que escreveu, e isto funciona também como uma espécie de “pagamento” de dívida de gratidão, não é bem isto, enfim, não me é fácil explicar a coisa. Raios, que isto hoje está sempre a baralhar-se! Resumo do resumo: um nome, um elenco, uma encenadora, um prazo (não muito rígido) é o que me faz sentir sob a pressão de uma encomenda. Já está.
Outra questão, esta mais importante: o Virgílio foi um escritor (de “textos” e de teatro), que conheci bem; muitos dos seus amigos (e detractores) estão vivos; sobre a sua morte não passou muito tempo (morreu em 1994): não quero fazer biografia, nem privada nem oficial, mas parece-me inevitável que a “minha verdade” venha a ser confrontada com a “verdade” de cada um. Um problema, portanto. Outro, que me arrasa: quero continuar a ser neste texto o “puto refilão” que o Virgílio conheceu – assim como quero que o Virgílio neste texto seja o “meu” Virgílio dos anos turbulentos e mágicos que partilhámos. E isto não se faz cosendo palavras dele umas às outras com maior ou menor engenho: se aquilo que une duas pessoas não se sentir a palpitar, o Virgílio, esteja onde estiver e não sei por que raio de maneira, há-de dar-me uma valente sova, daquelas que nos tolhem a “ialma” para sempre.
No mês passado, confessei a uma amiga comum os estados pânicos que tudo isto me provoca; ela reconfortou-me, dizendo-me que “ele iria gostar muito” daquilo que estou a fazer: mas quem é que tem a certeza disso, digo eu? “Não escrevas, quem é que te obriga?”, pode alguém dizer-me e acabar assim com a lamechice do “sofrimento do criador”. Não consigo. Já tentei, juro, não consigo, não sou capaz de desistir. Não avanço muito mas também não consigo parar. Já pensei numa vidente...
A pouco e pouco há-de uma verdade ir crescendo.
Outra questão, esta mais importante: o Virgílio foi um escritor (de “textos” e de teatro), que conheci bem; muitos dos seus amigos (e detractores) estão vivos; sobre a sua morte não passou muito tempo (morreu em 1994): não quero fazer biografia, nem privada nem oficial, mas parece-me inevitável que a “minha verdade” venha a ser confrontada com a “verdade” de cada um. Um problema, portanto. Outro, que me arrasa: quero continuar a ser neste texto o “puto refilão” que o Virgílio conheceu – assim como quero que o Virgílio neste texto seja o “meu” Virgílio dos anos turbulentos e mágicos que partilhámos. E isto não se faz cosendo palavras dele umas às outras com maior ou menor engenho: se aquilo que une duas pessoas não se sentir a palpitar, o Virgílio, esteja onde estiver e não sei por que raio de maneira, há-de dar-me uma valente sova, daquelas que nos tolhem a “ialma” para sempre.
No mês passado, confessei a uma amiga comum os estados pânicos que tudo isto me provoca; ela reconfortou-me, dizendo-me que “ele iria gostar muito” daquilo que estou a fazer: mas quem é que tem a certeza disso, digo eu? “Não escrevas, quem é que te obriga?”, pode alguém dizer-me e acabar assim com a lamechice do “sofrimento do criador”. Não consigo. Já tentei, juro, não consigo, não sou capaz de desistir. Não avanço muito mas também não consigo parar. Já pensei numa vidente...
A pouco e pouco há-de uma verdade ir crescendo.
TRABALHO DE CASA
A Joana (Fartaria) disse-me: “disseste que acabavas de a escrever, agora desenrasca-te que não posso encenar um texto que não existe”: foi mais ou menos assim o ultimato, e já lá vão umas semanas. E é com estas palavras que adormeço e acordo – e provavelmente são as que me embaraçam os sonhos, pelo menos é o que parece a julgar pelos vestígios na almofada. Sim, eu disse que acabava de escrever o texto – porque gosto, porque quero e porque me comprometi. OK! Então, por que é que ando há semanas a “encanar a perna à rã”?
Enquanto a resposta não chega, adianto “trabalho de casa”.
Este “trabalho de casa”, a que às vezes chamo “trabalhinho escravo”, consiste em ir botando para o PC e para os cadernos: ideias mais ou menos soltas (ou “à solta”); roubos vários (neste caso, aos textos do Virgílio Martinho, em primeiro lugar, e a todos os que de algum modo e por qualquer razão se atravessem no meu caminho); ideias menos soltas, ie, tentativas de “esqueletizar” o texto (desculpem o palavrão, mas é que não gosto nada, mesma nada de “estruturar” e de momento não me ocorre nada melhor); cenas soltas, pedaços de “falas”, “ambientes”, coisas inqualificáveis; e um etc muito grande. Espero que os meus alunos não leiam isto, não é metodologia que se aconselhe, muito menos que se mostre; espero também que o Gonçalo M. Tavares não passe por aqui, ele que já sabe todos os livros, e por que ordem, vai escrever e publicar até ao ano 2053!); idem para o Carmelo, que escreveu esta coisa bamburreante (não sei o que quer dizer mas acho-lhe piada e para o que é serve, além de também ser um “roubo”): “Escrever um romance é permanecer no seio de homologias resguardadas pela interpretação contingente e nunca definitiva.” Chiça!
Virgílio, por Cesariny
No Campo de Afectos - onde comecei isto - já tinha alguma coisita junta, como agora depois da trasladação aqui se pode ver. Hoje, recomeço a labuta. Para já, pedaços de um texto singular do Vitor Silva Tavares (sim, esse, o da & etc), sobre o Virgílio (revista Cadernos, nº 10, Almada, Setembro de 1995, entre as páginas 11 e 15. O texto do Vitor chama-se “O meu Virgílio”).
«Enfarpelado de funcionário-público modelo (seja: absentista à escala inversa do salário), dir-se-ia extraído dum conto de Gogol – roído de infortúnio, azamboado de sonhos – não fora nele o conhecimento da dor, a consciência das disciplinas da revolta e o contraponto de irrisão com que salgava iras e convicções.
Atravessa, horizontal e neurótico, a noite e nevoeiro do fascismo lusitano (...) “homem sem qualidades” pardo e constrangido (...).
A talvez infância de miúdo “remediado” (...), filho de ferroviário e de mãe a condizer, é-lhe fonte inextinguível de transfiguração poética (...): quando o nojo bate fundo, é ele-criança (...) que transmuta o sarro psicológico em questão política. (...)
Será entre estúrdias de desintegrados, de putas e poetas, que se vê comparsa da única ficção libertadora sonhada possível nos dias cinzentos da cidade: cu nas cadeiras dos cafés, fundir Marx e Rimbaud, comunismo e surrealismo, não por menos.
(...) entre dívidas muitas acumuladas e biscates de aflição (hora-extra de espinha curvada ao estirador, traduções de fraco poder alimentício), para o “já agora tanto faz” dos vícios menores, ódio engolido a rodadas de cerveja. No Inferno, claro (...).
(...) acusado de “desvio ferroviário” pelo grão-mestre do Abjeccionismo (Pedro Oom (...) que entendeu ler no Relógio de Cuco uma lamechice neo-realistona (...).
(...) toma partido prático, entrega-se humilde ao que pensa justo, solta-se orgulhoso no demais que é território dos meninos novos, também o dele (...).
Que força é essa, amigo? Onde vais buscar a música venosa, a reserva de alegria, a pulsão amorosa que te faz mover a mão sobre o papel da escrita? – Assumido “filho do povo”, assim mesmo em primário e tudo, é aos “filhos do povo”, à sua projecção mítica (...) que te diriges. Esse o amor, essa a alavanca. Com seu contraponto fantasmático em jeito de grotesco, medonho carnaval: a choldra de arganazes (...); o fascismo, atreva nas cabecinhas, a mão armada da “ordem”.
(...) emborrachamo-nos até à abstracção do fígado, embrulhamo-nos em intrigas de cueca e ciumeiras, trocamos dentes com os dentes do António Manaças, do Forte, da Aldina, da Lita, do Herberto, do Sampaio, do Dácio, tanto mais vagabundos celestes dos antros de perdição que era aonde se garantia alguma saúde, não obstante. (...) desbastávamos uma decadência a vários títulos postiça, guerrilheiros de uma guerrilha forçada a autofagia.
(...) Não crendo em espíritos iô-iô, imagino-o aqui à minha volta – seu rosto de puto amarfanhado, seus olhos paradoxais de claridade – a casquinar um riso não sei se de censura se daquela troça que serve para iludir pudores de tímido. Sei que de qualquer modo, e se ele em vida, o ouviria aplicar a súmula genial dos seus considerandos: troc-troc.»
Enquanto a resposta não chega, adianto “trabalho de casa”.
Este “trabalho de casa”, a que às vezes chamo “trabalhinho escravo”, consiste em ir botando para o PC e para os cadernos: ideias mais ou menos soltas (ou “à solta”); roubos vários (neste caso, aos textos do Virgílio Martinho, em primeiro lugar, e a todos os que de algum modo e por qualquer razão se atravessem no meu caminho); ideias menos soltas, ie, tentativas de “esqueletizar” o texto (desculpem o palavrão, mas é que não gosto nada, mesma nada de “estruturar” e de momento não me ocorre nada melhor); cenas soltas, pedaços de “falas”, “ambientes”, coisas inqualificáveis; e um etc muito grande. Espero que os meus alunos não leiam isto, não é metodologia que se aconselhe, muito menos que se mostre; espero também que o Gonçalo M. Tavares não passe por aqui, ele que já sabe todos os livros, e por que ordem, vai escrever e publicar até ao ano 2053!); idem para o Carmelo, que escreveu esta coisa bamburreante (não sei o que quer dizer mas acho-lhe piada e para o que é serve, além de também ser um “roubo”): “Escrever um romance é permanecer no seio de homologias resguardadas pela interpretação contingente e nunca definitiva.” Chiça!
Virgílio, por Cesariny
No Campo de Afectos - onde comecei isto - já tinha alguma coisita junta, como agora depois da trasladação aqui se pode ver. Hoje, recomeço a labuta. Para já, pedaços de um texto singular do Vitor Silva Tavares (sim, esse, o da & etc), sobre o Virgílio (revista Cadernos, nº 10, Almada, Setembro de 1995, entre as páginas 11 e 15. O texto do Vitor chama-se “O meu Virgílio”).
«Enfarpelado de funcionário-público modelo (seja: absentista à escala inversa do salário), dir-se-ia extraído dum conto de Gogol – roído de infortúnio, azamboado de sonhos – não fora nele o conhecimento da dor, a consciência das disciplinas da revolta e o contraponto de irrisão com que salgava iras e convicções.
Atravessa, horizontal e neurótico, a noite e nevoeiro do fascismo lusitano (...) “homem sem qualidades” pardo e constrangido (...).
A talvez infância de miúdo “remediado” (...), filho de ferroviário e de mãe a condizer, é-lhe fonte inextinguível de transfiguração poética (...): quando o nojo bate fundo, é ele-criança (...) que transmuta o sarro psicológico em questão política. (...)
Será entre estúrdias de desintegrados, de putas e poetas, que se vê comparsa da única ficção libertadora sonhada possível nos dias cinzentos da cidade: cu nas cadeiras dos cafés, fundir Marx e Rimbaud, comunismo e surrealismo, não por menos.
(...) entre dívidas muitas acumuladas e biscates de aflição (hora-extra de espinha curvada ao estirador, traduções de fraco poder alimentício), para o “já agora tanto faz” dos vícios menores, ódio engolido a rodadas de cerveja. No Inferno, claro (...).
(...) acusado de “desvio ferroviário” pelo grão-mestre do Abjeccionismo (Pedro Oom (...) que entendeu ler no Relógio de Cuco uma lamechice neo-realistona (...).
(...) toma partido prático, entrega-se humilde ao que pensa justo, solta-se orgulhoso no demais que é território dos meninos novos, também o dele (...).
Que força é essa, amigo? Onde vais buscar a música venosa, a reserva de alegria, a pulsão amorosa que te faz mover a mão sobre o papel da escrita? – Assumido “filho do povo”, assim mesmo em primário e tudo, é aos “filhos do povo”, à sua projecção mítica (...) que te diriges. Esse o amor, essa a alavanca. Com seu contraponto fantasmático em jeito de grotesco, medonho carnaval: a choldra de arganazes (...); o fascismo, atreva nas cabecinhas, a mão armada da “ordem”.
(...) emborrachamo-nos até à abstracção do fígado, embrulhamo-nos em intrigas de cueca e ciumeiras, trocamos dentes com os dentes do António Manaças, do Forte, da Aldina, da Lita, do Herberto, do Sampaio, do Dácio, tanto mais vagabundos celestes dos antros de perdição que era aonde se garantia alguma saúde, não obstante. (...) desbastávamos uma decadência a vários títulos postiça, guerrilheiros de uma guerrilha forçada a autofagia.
(...) Não crendo em espíritos iô-iô, imagino-o aqui à minha volta – seu rosto de puto amarfanhado, seus olhos paradoxais de claridade – a casquinar um riso não sei se de censura se daquela troça que serve para iludir pudores de tímido. Sei que de qualquer modo, e se ele em vida, o ouviria aplicar a súmula genial dos seus considerandos: troc-troc.»