segunda-feira, agosto 11, 2003
TRABALHOS
Trabalho de casa.
Trabalho sobre os textos do Virgílio Martinho [ver posts de 20 e 25 de Junho] na companhia de W. Benjamin (Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, Relógio d’Água, 1992):
«[...] a força de um texto diverge, conforma é lido ou transcrito. [...] somente quando copiado, o texto domina a alma do que sobre ele se debruça, ao passo que o simples leitor nunca chega a conhecer as novas perspectivas do seu íntimo [...]» [p. 43]
«Não há nada de mais pobre que uma verdade expressa tal como foi pensada. [...]» [p. 97]
«As citações, no meu trabalho, são como salteadores à beira do caminho, que irrompem armados e retiram ao passeante a sua convicção. [...]» [p. 98]
Trabalho de cópia.
«[...] Sei, escrevo hoje e invento-me, estou presente no emaranhado das coisas da memória. [...]»
[Relógio de cuco, p. 50]
«Eu amava o velho pai como quem amam uma coisa inventada, sem palavras nem carinhos. Via-o enorme, as pernas sempre a fugirem de mim, o corpo magro ligeiramente curvado e lá em cima e as fossas do seu nariz. E era esta e não outra a minha invenção de pai. Via-o e era o mesmo que sentir-me duas vezes, como sombra na parede ou imagem no espelho. Porque ele tinha um ar severo e grave, raramente me falava, nunca me beijava, só uma vez me atirou com a mona às pernas. Como um pai que não há. [...]»
[Relógio de cuco, p. 13]
Trabalho sobre os textos do Virgílio Martinho [ver posts de 20 e 25 de Junho] na companhia de W. Benjamin (Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, Relógio d’Água, 1992):
«[...] a força de um texto diverge, conforma é lido ou transcrito. [...] somente quando copiado, o texto domina a alma do que sobre ele se debruça, ao passo que o simples leitor nunca chega a conhecer as novas perspectivas do seu íntimo [...]» [p. 43]
«Não há nada de mais pobre que uma verdade expressa tal como foi pensada. [...]» [p. 97]
«As citações, no meu trabalho, são como salteadores à beira do caminho, que irrompem armados e retiram ao passeante a sua convicção. [...]» [p. 98]
Trabalho de cópia.
«[...] Sei, escrevo hoje e invento-me, estou presente no emaranhado das coisas da memória. [...]»
[Relógio de cuco, p. 50]
«Eu amava o velho pai como quem amam uma coisa inventada, sem palavras nem carinhos. Via-o enorme, as pernas sempre a fugirem de mim, o corpo magro ligeiramente curvado e lá em cima e as fossas do seu nariz. E era esta e não outra a minha invenção de pai. Via-o e era o mesmo que sentir-me duas vezes, como sombra na parede ou imagem no espelho. Porque ele tinha um ar severo e grave, raramente me falava, nunca me beijava, só uma vez me atirou com a mona às pernas. Como um pai que não há. [...]»
[Relógio de cuco, p. 13]
ESTÁ ABERTA A ESCRITA PÚBLICA
A minha peça Alquimia, baseada em textos ficcionais de Virgílio Martinho (1928-1994), está em processo de escrita. Espero agora receber opiniões e críticas (e-mail: camlisbon@yahoo.com). O texto do primeiro excerto já lido em público (cf. posts infra) pode ser aqui consultado. Fica também aqui a lista de textos utilizados; em alguns deles refiro a cota de catalogação da Biblioteca Nacional.
Obrigado.
Obras de ficção utilizadas na escrita da peça:
Orlando em Tríptico e Aventuras, Lisboa, Edição de Autor, 1961 (L. 52165 P.)
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1963
Festa Pública, in A Antologia em 58, Mário Cesariny (dir.), Lisboa, 1958 (L. 48459 P.)
Rainhas Cláudias ao Domingo, Fundão, Jornal do Fundão, 1972 (L. 76757 P.); reeditado por Contexto, Lisboa, 1982 (imp.)
Relógio de Cuco, Lisboa, Estampa, 1973 (869.0-3 MA,V(1) ) ou (L. 87757 P.)
A Caça, Porto, Afrontamento, 1974
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1976 (L. 55074 P.)
O Concerto das Buzinas, Lisboa, Seara Nova, 1979 (869.0-3 MA,V)
O Menino Novo, Lisboa, Edição de Autor, 1989 (L. 40536 V.)
Obrigado.
Obras de ficção utilizadas na escrita da peça:
Orlando em Tríptico e Aventuras, Lisboa, Edição de Autor, 1961 (L. 52165 P.)
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1963
Festa Pública, in A Antologia em 58, Mário Cesariny (dir.), Lisboa, 1958 (L. 48459 P.)
Rainhas Cláudias ao Domingo, Fundão, Jornal do Fundão, 1972 (L. 76757 P.); reeditado por Contexto, Lisboa, 1982 (imp.)
Relógio de Cuco, Lisboa, Estampa, 1973 (869.0-3 MA,V(1) ) ou (L. 87757 P.)
A Caça, Porto, Afrontamento, 1974
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1976 (L. 55074 P.)
O Concerto das Buzinas, Lisboa, Seara Nova, 1979 (869.0-3 MA,V)
O Menino Novo, Lisboa, Edição de Autor, 1989 (L. 40536 V.)
UMA CENA DE ALQUIMIA
Alquimia, de Carlos Alberto Machado { em construção - junho de 2003 }
Leitura pública de excerto da peça Alquimia, com os actores Vitor Soares, Carlos Oliveira e Sílvia Barbeiro, seguida de conversa. Na Livraria Eterno Retorno (ao Bairro Alto, em Lisboa), 21 de Junho de 2003 (22 Horas).
ALQUIMIA é um texto para teatro, de Carlos Alberto Machado, baseado em textos narrativos de Virgílio Martinho.
O presente excerto é uma adaptação de Rainhas Cláudias ao Domingo (Jornal do Fundão, 1972) e foi preparado para esta Leitura Pública.
Personagens: Virgílio/Narrador - Virgílio - Sofia
Sei, escrevo hoje e invento-me,
estou presente no emaranhado das coisas da memória.
Virgílio Martinho
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela estava numa rua pouco iluminada. Miúda e enfiada, muito pálida. Parei e quis dizer-lhe mulher queda em sossego, doce fruto meu mas não disse. Disse-lhe
VIRGÍLIO: Tens uma cama?
SOFIA: Tenho, mas primeiro passa para cá a massa.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
A voz dela era uma voz de rapariga quente, soava no sítio certo, tinha formigas. Apertei-lhe as mãos e beijei-as.
SOFIA: Não me digas que és desses, dos bons?! Dos que se deitam em camas que lhes pertencem, e, oh, é sempre a mesma!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Eu mendigava um buraco no escuro nocturno. Mas estava ainda no silêncio.
SOFIA: Então?! Ganho a minha vida, ouviste? Ou julgas que vivo do ar?
VIRGÍLIO: Podíamos ser amigos.
SOFIA: Ora, amigos, se me passares a massinha seremos mais do que isso! Tás a ouvir?! Passo as minhas necessidades como toda a gente, ou tu julgas que isto é só gozo?
VIRGÍLIO: Não queres vir?
SOFIA: Andas à pesca duma que caia?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E as mãos dela debaixo dos meus sovacos e depois a descerem lentamente...
SOFIA: Chiça, até tremes!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Tremia, sim, tremia. Rouco e percorrido de certa moleza como vossas excelências quando vão prá cama com a vossa querida.
SOFIA: Se calhar tás a pensar na coisa à borla, é? Claro, é o costume, espatifaste a massa e agora queres a coisa por amor.
Sofia começa a andar.
VIRGÍLIO: Ouve...
SOFIA: Nunca te vi por aqui, de onde é que saíste?
VIRGÍLIO: De lado nenhum. Uma bebedeira, vim daí. Sabes, uma velha disse que eu precisava de mãe e apalpou-me entre a pernas, achas bem?
SOFIA: Ora! E antes da bebedeira?
Chegam às escadas de uma pensão.
VIRGÍLIO: Tenho andado por aí, sou um rapazinho.
SOFIA: Isso vejo eu. Quero saber é donde vieste, com quem lidas…
VIRGÍLIO: Merda de pergunta… não sei… da barriga da minha mãe… tá bem?
SOFIA: E o dinheirinho? E dinheiro, menino?
VIRGÍLIO: Uns trocos…
SOFIA: ... que nem pró quarto chegam...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Mas eu não a queria perder, não podia.
VIRGÍLIO: Se pudesses...
SOFIA: Posso. Passa para cá o dinheiro que tens.
Entram na pensão.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Virou-se para mim e encostou a boca ao meu coração e falou-me como quem diz um segredo grave.
SOFIA: Não digas a ninguém que vou contigo à borla, depois os outros aproveitam-se.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Já nem a ouvia, beijava-lhe o pescoço, comia-lhe os cabelos, sentia no nariz os pêlos do casacão dela, no queixo a anatomia magricela do seu rosto. Não conseguia falar, tremia de amor como nos acontece... E ela calma e divertida, tinha experiência destes anseios, deixava fazer...
SOFIA: Tou farta de ser enganada por tipos de falinhas mansas como tu. Tou, sabes?, umas vezes por querer, outras sem querer...
VIRGÍLIO: ... E não devias estar?
SOFIA: Claro que não devia estar, uma pessoa não faz isto por prazer!
VIRGÍLIO: Não faz?
SOFIA: Não, os homens é que fazem sempre, duas bombadas, já está!
Outro silêncio. Este grave.
SOFIA: Se tivesses dinheiro havias de ver o que a gente fazia...
VIRGÍLIO: E não tenho?
SOFIA: (Rindo-se) Não tens mas quase me furas de lado a lado.
Entram num quarto.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Nua parecia uma criança. Criança nas nádegas, criança nas linhas quase imperceptíveis dos quadris que se perdiam nas sombras dos sovacos. Os seus ossos da espinha podiam contar-se um a um.
VIRGÍLIO: Tinha o teu corpo por volta dos meus dez anos.
SOFIA: Com tudo o que tenho?
VIRGÍLIO: Com tudo não, sem as coisas de mulher que tens.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela ria-se e eu especado, ainda vestido. E ria também. As maminhas dela, que cabiam à vontade nas palmas das minhas mãos, tremelicavam com o riso.
SOFIA: Boneco!, mosquinha morta!, queres fazer a coisa vestido? Vá, anda, não vês que quero festejar? Não vês? (pausa) A tua inocência, passarinho!
VIRGÍLIO: Oh, a minha inocência, julgas que é a primeira vez?
SOFIA: (Goza com ele) Estou agarrada a ti quando tinhas dez anos e não sinto nada, não sinto nada. (pausa) É por eu ser assim magricelas que não queres?
VIRGÍLIO: Não sou inocente.
SOFIA: Eu sei, percebi logo!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E depois fizemos o que vossas excelências sabem que se faz.
VIRGÍLIO: Não queres outra vez? (silêncio) Gostava de ficar aqui contigo.
SOFIA: Não pode ser, já te fiz o gosto, agora c’est fini. (pausa) Gostaste de mim? (depois empurra-o, ele cai de costas na cama e ela ri, vai dizendo aos poucos, entre o arfar do riso) Sabes, se estivesse abonada tudo se resolvia.
VIRGÍLIO: Podes dizer ao dono disto que se paga depois.
SOFIA: Não digo, ele é um bicho, um aleijado, percebes? E os aleijados são maus, não gostam de ninguém. (silêncio) Queres ficar porque gostaste de mim ou porque tás estoirado?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Não lhe respondi; fiquei encostado à cabeceira da cama a esburacar o umbigo, talvez sem dar por isso.
SOFIA: Veste-te, então.
Saem do quarto. Está frio na rua.
SOFIA: Que mosca te mordeu?
VIRGÍLIO: Aquilo cheirava mal. Vamos para um jardim.
Sofia concorda, sem dizer nada. Vão para um pequeno jardim.
SOFIA: Eh!, vamos perder a noite, namorado, tá bem?
VIRGÍLIO: Tá bem! Vamos gozar tudo o que pudermos!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E beijei-a.
SOFIA: Na rua, não.
VIRGÍLIO: Queria estar contigo.
SOFIA: Temos tempo, somos novinhos em folha.
VIRGÍLIO: (Com raiva) Somos agora novos, miúda!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Porque de repente vi os anos todos, desde a mãe, desde o vagido inicial, e como lancetadas as chatices todas, uma a uma.
VIRGÍLO: Merda para isto! Falta-nos tudo!
SOFIA: (Sorrindo) Tu és um velho, eu sou centenária, pronto.
VIRGÍLIO: (Exaltado) Tá bem, tá bem.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Meti-lhe a mão pelo vestido dentro e deixei-a ficar no quente das mamas dela, e ela pôs a sua nas minhas partes, continuando como se nada fosse, as cabeças encostadas, imóveis ali, sérios, a noite uma cúpula indiferente lá no alto, as persianas fechadas, até que expeli mais uma vez as minhas viris humidades e o cheiro a semente fê-la suspirar.
SOFIA: Quem me dera ser homem, porque vocês deitam fora, libertam-se, enquanto nós, as rachas, acumulamos, somos caixotes...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Até que também ela se elevou nos balidos de quem se vem no mundo, de quem usa o corpo!
VIRGÍLIO: Vens-te no mundo!
SOFIA: As vigilantes do asilo onde cresci batiam palmas a propósito de tudo, queres saber como? (e executa enquanto explica) para comermos uma vez, para irmos à retrete duas vezes, para dormirmos três vezes...
VIRGÍLIO: ... embora passar a noite no cais?
SOFIA: Tá bem.
Pontão de um cais.
VIRGÍLIO: Vou contar-te histórias.
SOFIA: Que histórias? Aquece-me.
VIRGÍLIO: Está um rosto no céu.
SOFIA: Onde? não vejo nada, só estrelas, e “as estrelas são pescadoras e andam à procura de gente”.
VIRGÍLIO: Um rosto ali, olha, nas nuvens, olha, os buracos dos olhos, os outros do nariz, o volume do queixo e... os malares e a testa. É um rosto para o sol entrar por ele quando nascer, ainda falta um pouco.
SOFIA: Tenho frio, aquece-me.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Aquecemo-nos mutuamente. Pernas a balançar no vazio, entre o líquido e o gasoso.
SOFIA: Aqui é o fim da terra, o começo do oceano.
VIRGÍLIO: E lá longe, muito longe, a viagem. (silêncio) Vais dormir? É quase dia.
SOFIA: (Resmunga).
VIRGÍLIO: O rosto desapareceu do céu, levou-o o vento da manhã, a primeira luz. (pausa) Cá estamos vivos.
SOFIA: (Resmunga de novo).
VIRGÍLIO: Estás gelada. Uma vida inteira aqui e ficávamos de pedra, sabes?, de pedra.
SOFIA: Quero o sol.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Estava um “dia algodoado de nuvens marinhas”.
E passou um marinheiro a desejar o sol.
SOFIA: (Segreda) Marido, o povo acordou.
VIRGÍLIO: Tenho fome, e tu?
SOFIA: Somos crianças, sabes? E as massas para comer?
VIRGÍLIO: Pois, não há. Estás da cor da morte, miúda.
SOFIA: Queres ver como fico corada?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Despiu o casacão e ajoelhou-se no último degrau do pontão. Puxou as saias até ao ventre, curvada para as águas, nossa senhora a parir. Lavou o rosto. Contente, pela súbita comunhão de frio e renascimento. E eu voltei a olhá-la, atraído por aquele campo magnético que ela era.
SOFIA: Olhas-me como se eu fosse morrer!
VIRGÍLIO: E não vais?
Leitura pública de excerto da peça Alquimia, com os actores Vitor Soares, Carlos Oliveira e Sílvia Barbeiro, seguida de conversa. Na Livraria Eterno Retorno (ao Bairro Alto, em Lisboa), 21 de Junho de 2003 (22 Horas).
ALQUIMIA é um texto para teatro, de Carlos Alberto Machado, baseado em textos narrativos de Virgílio Martinho.
O presente excerto é uma adaptação de Rainhas Cláudias ao Domingo (Jornal do Fundão, 1972) e foi preparado para esta Leitura Pública.
Personagens: Virgílio/Narrador - Virgílio - Sofia
Sei, escrevo hoje e invento-me,
estou presente no emaranhado das coisas da memória.
Virgílio Martinho
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela estava numa rua pouco iluminada. Miúda e enfiada, muito pálida. Parei e quis dizer-lhe mulher queda em sossego, doce fruto meu mas não disse. Disse-lhe
VIRGÍLIO: Tens uma cama?
SOFIA: Tenho, mas primeiro passa para cá a massa.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
A voz dela era uma voz de rapariga quente, soava no sítio certo, tinha formigas. Apertei-lhe as mãos e beijei-as.
SOFIA: Não me digas que és desses, dos bons?! Dos que se deitam em camas que lhes pertencem, e, oh, é sempre a mesma!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Eu mendigava um buraco no escuro nocturno. Mas estava ainda no silêncio.
SOFIA: Então?! Ganho a minha vida, ouviste? Ou julgas que vivo do ar?
VIRGÍLIO: Podíamos ser amigos.
SOFIA: Ora, amigos, se me passares a massinha seremos mais do que isso! Tás a ouvir?! Passo as minhas necessidades como toda a gente, ou tu julgas que isto é só gozo?
VIRGÍLIO: Não queres vir?
SOFIA: Andas à pesca duma que caia?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E as mãos dela debaixo dos meus sovacos e depois a descerem lentamente...
SOFIA: Chiça, até tremes!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Tremia, sim, tremia. Rouco e percorrido de certa moleza como vossas excelências quando vão prá cama com a vossa querida.
SOFIA: Se calhar tás a pensar na coisa à borla, é? Claro, é o costume, espatifaste a massa e agora queres a coisa por amor.
Sofia começa a andar.
VIRGÍLIO: Ouve...
SOFIA: Nunca te vi por aqui, de onde é que saíste?
VIRGÍLIO: De lado nenhum. Uma bebedeira, vim daí. Sabes, uma velha disse que eu precisava de mãe e apalpou-me entre a pernas, achas bem?
SOFIA: Ora! E antes da bebedeira?
Chegam às escadas de uma pensão.
VIRGÍLIO: Tenho andado por aí, sou um rapazinho.
SOFIA: Isso vejo eu. Quero saber é donde vieste, com quem lidas…
VIRGÍLIO: Merda de pergunta… não sei… da barriga da minha mãe… tá bem?
SOFIA: E o dinheirinho? E dinheiro, menino?
VIRGÍLIO: Uns trocos…
SOFIA: ... que nem pró quarto chegam...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Mas eu não a queria perder, não podia.
VIRGÍLIO: Se pudesses...
SOFIA: Posso. Passa para cá o dinheiro que tens.
Entram na pensão.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Virou-se para mim e encostou a boca ao meu coração e falou-me como quem diz um segredo grave.
SOFIA: Não digas a ninguém que vou contigo à borla, depois os outros aproveitam-se.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Já nem a ouvia, beijava-lhe o pescoço, comia-lhe os cabelos, sentia no nariz os pêlos do casacão dela, no queixo a anatomia magricela do seu rosto. Não conseguia falar, tremia de amor como nos acontece... E ela calma e divertida, tinha experiência destes anseios, deixava fazer...
SOFIA: Tou farta de ser enganada por tipos de falinhas mansas como tu. Tou, sabes?, umas vezes por querer, outras sem querer...
VIRGÍLIO: ... E não devias estar?
SOFIA: Claro que não devia estar, uma pessoa não faz isto por prazer!
VIRGÍLIO: Não faz?
SOFIA: Não, os homens é que fazem sempre, duas bombadas, já está!
Outro silêncio. Este grave.
SOFIA: Se tivesses dinheiro havias de ver o que a gente fazia...
VIRGÍLIO: E não tenho?
SOFIA: (Rindo-se) Não tens mas quase me furas de lado a lado.
Entram num quarto.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Nua parecia uma criança. Criança nas nádegas, criança nas linhas quase imperceptíveis dos quadris que se perdiam nas sombras dos sovacos. Os seus ossos da espinha podiam contar-se um a um.
VIRGÍLIO: Tinha o teu corpo por volta dos meus dez anos.
SOFIA: Com tudo o que tenho?
VIRGÍLIO: Com tudo não, sem as coisas de mulher que tens.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela ria-se e eu especado, ainda vestido. E ria também. As maminhas dela, que cabiam à vontade nas palmas das minhas mãos, tremelicavam com o riso.
SOFIA: Boneco!, mosquinha morta!, queres fazer a coisa vestido? Vá, anda, não vês que quero festejar? Não vês? (pausa) A tua inocência, passarinho!
VIRGÍLIO: Oh, a minha inocência, julgas que é a primeira vez?
SOFIA: (Goza com ele) Estou agarrada a ti quando tinhas dez anos e não sinto nada, não sinto nada. (pausa) É por eu ser assim magricelas que não queres?
VIRGÍLIO: Não sou inocente.
SOFIA: Eu sei, percebi logo!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E depois fizemos o que vossas excelências sabem que se faz.
VIRGÍLIO: Não queres outra vez? (silêncio) Gostava de ficar aqui contigo.
SOFIA: Não pode ser, já te fiz o gosto, agora c’est fini. (pausa) Gostaste de mim? (depois empurra-o, ele cai de costas na cama e ela ri, vai dizendo aos poucos, entre o arfar do riso) Sabes, se estivesse abonada tudo se resolvia.
VIRGÍLIO: Podes dizer ao dono disto que se paga depois.
SOFIA: Não digo, ele é um bicho, um aleijado, percebes? E os aleijados são maus, não gostam de ninguém. (silêncio) Queres ficar porque gostaste de mim ou porque tás estoirado?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Não lhe respondi; fiquei encostado à cabeceira da cama a esburacar o umbigo, talvez sem dar por isso.
SOFIA: Veste-te, então.
Saem do quarto. Está frio na rua.
SOFIA: Que mosca te mordeu?
VIRGÍLIO: Aquilo cheirava mal. Vamos para um jardim.
Sofia concorda, sem dizer nada. Vão para um pequeno jardim.
SOFIA: Eh!, vamos perder a noite, namorado, tá bem?
VIRGÍLIO: Tá bem! Vamos gozar tudo o que pudermos!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E beijei-a.
SOFIA: Na rua, não.
VIRGÍLIO: Queria estar contigo.
SOFIA: Temos tempo, somos novinhos em folha.
VIRGÍLIO: (Com raiva) Somos agora novos, miúda!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Porque de repente vi os anos todos, desde a mãe, desde o vagido inicial, e como lancetadas as chatices todas, uma a uma.
VIRGÍLO: Merda para isto! Falta-nos tudo!
SOFIA: (Sorrindo) Tu és um velho, eu sou centenária, pronto.
VIRGÍLIO: (Exaltado) Tá bem, tá bem.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Meti-lhe a mão pelo vestido dentro e deixei-a ficar no quente das mamas dela, e ela pôs a sua nas minhas partes, continuando como se nada fosse, as cabeças encostadas, imóveis ali, sérios, a noite uma cúpula indiferente lá no alto, as persianas fechadas, até que expeli mais uma vez as minhas viris humidades e o cheiro a semente fê-la suspirar.
SOFIA: Quem me dera ser homem, porque vocês deitam fora, libertam-se, enquanto nós, as rachas, acumulamos, somos caixotes...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Até que também ela se elevou nos balidos de quem se vem no mundo, de quem usa o corpo!
VIRGÍLIO: Vens-te no mundo!
SOFIA: As vigilantes do asilo onde cresci batiam palmas a propósito de tudo, queres saber como? (e executa enquanto explica) para comermos uma vez, para irmos à retrete duas vezes, para dormirmos três vezes...
VIRGÍLIO: ... embora passar a noite no cais?
SOFIA: Tá bem.
Pontão de um cais.
VIRGÍLIO: Vou contar-te histórias.
SOFIA: Que histórias? Aquece-me.
VIRGÍLIO: Está um rosto no céu.
SOFIA: Onde? não vejo nada, só estrelas, e “as estrelas são pescadoras e andam à procura de gente”.
VIRGÍLIO: Um rosto ali, olha, nas nuvens, olha, os buracos dos olhos, os outros do nariz, o volume do queixo e... os malares e a testa. É um rosto para o sol entrar por ele quando nascer, ainda falta um pouco.
SOFIA: Tenho frio, aquece-me.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Aquecemo-nos mutuamente. Pernas a balançar no vazio, entre o líquido e o gasoso.
SOFIA: Aqui é o fim da terra, o começo do oceano.
VIRGÍLIO: E lá longe, muito longe, a viagem. (silêncio) Vais dormir? É quase dia.
SOFIA: (Resmunga).
VIRGÍLIO: O rosto desapareceu do céu, levou-o o vento da manhã, a primeira luz. (pausa) Cá estamos vivos.
SOFIA: (Resmunga de novo).
VIRGÍLIO: Estás gelada. Uma vida inteira aqui e ficávamos de pedra, sabes?, de pedra.
SOFIA: Quero o sol.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Estava um “dia algodoado de nuvens marinhas”.
E passou um marinheiro a desejar o sol.
SOFIA: (Segreda) Marido, o povo acordou.
VIRGÍLIO: Tenho fome, e tu?
SOFIA: Somos crianças, sabes? E as massas para comer?
VIRGÍLIO: Pois, não há. Estás da cor da morte, miúda.
SOFIA: Queres ver como fico corada?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Despiu o casacão e ajoelhou-se no último degrau do pontão. Puxou as saias até ao ventre, curvada para as águas, nossa senhora a parir. Lavou o rosto. Contente, pela súbita comunhão de frio e renascimento. E eu voltei a olhá-la, atraído por aquele campo magnético que ela era.
SOFIA: Olhas-me como se eu fosse morrer!
VIRGÍLIO: E não vais?