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segunda-feira, setembro 08, 2003

PISTAS  

O JPN deixou na caixa de comentários a sugestão para que dê “aos que não conhecem tão bem a obra de Virgílio Martinho, mais indicações sobre a fusão dos textos.” Caro Joaquim, o que proponho aqui – talvez não tenha explicado bem – é, justamente, um jogo (entre outras coisas). Um jogo com poucas regras, um tanto maleáveis - se tal é permitido num jogo. Temos um conjunto de materiais (lista no post abaixo); ideias que estão apresentadas, algumas, outras que nascem aqui à vista de todos; vozes terceiras que vão aparecendo e imiscuindo-se no(s) texto(s) que, aqui está a tal maleabilidade, podem vir de qualquer parte pela vontade de cada um; pedaços de textos do VM (que hão-de crescer, até agora não mais que umas breves citações); uma cena completa (está quase a aparecer outra); breves reflexões sobre o processo (ou, se quiserem, sobre o jogo e o modo de o ir jogando e inventando regras à medida que se desenrola...); tudo o que aqui não está nem pode estar; e ainda: desabafos, manias...

Suponho que tudo isto está um bocado armadilhado, não sei bem. Também não sei se não acabarei a escrever sozinho noite fora e com o zumbido das dúvidas inaudível para os vizinhos. Não sei. Quis (quero) experimentar isto. O que antes supunha saber e que de certo modo tenho agora confirmado, é que, por várias razões, o retorno nunca seria muito forte. Mas tinha a secreta esperança que não fosse quase inexistente... “Paciência”, já dizia a minha filha quando tinha 3 anos.



domingo, setembro 07, 2003

INVENTAR 

Vai ganhando consistência: o Virgílio “em cena” em diferentes “tempos” e “acontecimentos“, desdobrando-se, inventando vidas - as suas e as que vamos vendo desfiarem-se perante os nossos sentidos.
Tópicos: a idealização da boémia marginal/intelectual (Rainhas Cláudias ao Domingo); o sonho revolucionário e a companheira “ideal” (O Grande Cidadão); a prisão – “real” (Concerto das Buzinas); a infância e a família – “pai ferroviário e mãe a condizer”: Vitor Silva Tavares (Relógio de Cuco). E o que mais se verá nos próximos “capítulos”.

quinta-feira, setembro 04, 2003

ESCREVER 

João Lopes (DN, 5 de Agosto de 2000), cita um trecho de Le Siècle de Sartre, de Bernard-Henri Lévy):
«(...) É preciso medir bem esse crime primordial que é o acto de escrever. É preciso ver esse escritor nascente como uma espécie de animal literário a escavar o seu buraco, quase o seu retiro, no interior da obra dos outros (...).»

quarta-feira, setembro 03, 2003

ESCREVO HOJE E INVENTO-ME 

Sei, escrevo hoje e invento-me, estou presente no emaranhado das coisas da memória.
Virgílio Martinho, Relógio de cuco, p. 50

À medida que escrevo (esta e muitas outras coisas), vou descobrindo a minha escrita: respostas a estímulos e armadilhas, impregnação de intuições, negociação (invenção) com a memória, habilidades (mais ou menos conscientes); e manias, feridas, desejos, imagens, delírios, obscuridades, invenções, cadências (respiração), resguardos de cobardias, assomos de coragem: se quiserem: «escrevo hoje e invento-me».

Tenho horror a “personagens” e “didascálias” (excepção feita para os textos radicalmente didascálicos). As primeiras: muitas das dramaturgias e análises dramatúrgicas contemporâneas constróem vidas fora da matéria teatral – para mim, a existir essa coisa chamada vida (real/ficcional), ela faz-se do confronto entre a matéria “actor/performer” e a “palavra” na arena cénica; as segundas: muletas que tentam obviar a ausência de corporeidade da palavra, remendos de performatividade – arrepio-me da mesma forma quando leio “explicações” de poemas... A minha escrita para teatro procura manter à distância este ”horror”. Esta convicção é uma das minhas “verdades” (acho que já tenho idade e vida feita para me permitir inventar umas quantas...).

Sempre que nos meus textos para teatro escrever “personagem” leia-se “uma vida em forma de palavras”. Parece o mesmo mas não é.

“Didascálias”: também cometo os meus pecados... Mas gostava que fossem entendidas como fraquezas inerentes ao fatídico “processo de comunicação”...

Gostaria que os meus textos para teatro fossem tão só lampejos de palavras em corpos vivos. Fulgurações. Imagens. Caleidoscópios de palavras em eterna recomposição (tentativa em Os Nomes que faltam; novas experiências em Restos. Interiores e Aquitanta...). Mas há sempre o tal problema da “comunicação”...

terça-feira, setembro 02, 2003

JÁ PENSEI NUMA VIDENTE... 

Esta Alquimia que procuro escrever – à vista de todos – funciona para mim um pouco como se fosse uma encomenda. Tento explicar: há coisa de ano e meio, a Joana Fartaria teve uma possibilidade de encenar um texto meu em Almada; depois de algumas conversas, sugeri-lhe escrever qualquer coisa sobre o Virgílio e ela disse que sim. O projecto não avançou imediatamente e pouco tempo depois, e com pouco trabalho feito, deixei de pensar no assunto. Em Junho deste ano, fui desafiado, com outros dramaturgos, a participar numa iniciativa de leitura de textos para teatro inéditos [vide infra]; como não tinha nada em estado de ser mostrado, peguei no conto Rainhas Cláudias ao Domingo e criei uma cena longa, cerca de 15 minutos [vide infra], que acabou por ser o ponto de partida desta aventura que agora partilho com interessados e simples curiosos. Mas o que quero destacar é que o impulso inicial funcionou para mim como uma encomenda de terceiros (além do mais, tinha, como hoje, já lá irei, um elenco concreto para o qual deveria escrever). Agora, de novo com a Joana, surge um certo “tom” de encomenda: temos um projecto comum para criar alguns espectáculos e o Alquimia, que já tem “adeptos”... é mesmo para se fazer nas “tábuas”. Resumindo, que isto já vai longo: o texto não me surge como o produto do meu lento processo de imbricação de ideias e materiais mas como uma meta que devo atingir, tendo como ponto de partida apenas... um nome. É evidente que não é um nome qualquer (como está agora a acontecer-me por via de uma encomenda “a sério”, depois contarei), o Virgílio foi meu amigo, gosto imenso de algumas coisas que escreveu, e isto funciona também como uma espécie de “pagamento” de dívida de gratidão, não é bem isto, enfim, não me é fácil explicar a coisa. Raios, que isto hoje está sempre a baralhar-se! Resumo do resumo: um nome, um elenco, uma encenadora, um prazo (não muito rígido) é o que me faz sentir sob a pressão de uma encomenda. Já está.
Outra questão, esta mais importante: o Virgílio foi um escritor (de “textos” e de teatro), que conheci bem; muitos dos seus amigos (e detractores) estão vivos; sobre a sua morte não passou muito tempo (morreu em 1994): não quero fazer biografia, nem privada nem oficial, mas parece-me inevitável que a “minha verdade” venha a ser confrontada com a “verdade” de cada um. Um problema, portanto. Outro, que me arrasa: quero continuar a ser neste texto o “puto refilão” que o Virgílio conheceu – assim como quero que o Virgílio neste texto seja o “meu” Virgílio dos anos turbulentos e mágicos que partilhámos. E isto não se faz cosendo palavras dele umas às outras com maior ou menor engenho: se aquilo que une duas pessoas não se sentir a palpitar, o Virgílio, esteja onde estiver e não sei por que raio de maneira, há-de dar-me uma valente sova, daquelas que nos tolhem a “ialma” para sempre.
No mês passado, confessei a uma amiga comum os estados pânicos que tudo isto me provoca; ela reconfortou-me, dizendo-me que “ele iria gostar muito” daquilo que estou a fazer: mas quem é que tem a certeza disso, digo eu? “Não escrevas, quem é que te obriga?”, pode alguém dizer-me e acabar assim com a lamechice do “sofrimento do criador”. Não consigo. Já tentei, juro, não consigo, não sou capaz de desistir. Não avanço muito mas também não consigo parar. Já pensei numa vidente...
A pouco e pouco há-de uma verdade ir crescendo.

TRABALHO DE CASA 

A Joana (Fartaria) disse-me: “disseste que acabavas de a escrever, agora desenrasca-te que não posso encenar um texto que não existe”: foi mais ou menos assim o ultimato, e já lá vão umas semanas. E é com estas palavras que adormeço e acordo – e provavelmente são as que me embaraçam os sonhos, pelo menos é o que parece a julgar pelos vestígios na almofada. Sim, eu disse que acabava de escrever o texto – porque gosto, porque quero e porque me comprometi. OK! Então, por que é que ando há semanas a “encanar a perna à rã”?
Enquanto a resposta não chega, adianto “trabalho de casa”.
Este “trabalho de casa”, a que às vezes chamo “trabalhinho escravo”, consiste em ir botando para o PC e para os cadernos: ideias mais ou menos soltas (ou “à solta”); roubos vários (neste caso, aos textos do Virgílio Martinho, em primeiro lugar, e a todos os que de algum modo e por qualquer razão se atravessem no meu caminho); ideias menos soltas, ie, tentativas de “esqueletizar” o texto (desculpem o palavrão, mas é que não gosto nada, mesma nada de “estruturar” e de momento não me ocorre nada melhor); cenas soltas, pedaços de “falas”, “ambientes”, coisas inqualificáveis; e um etc muito grande. Espero que os meus alunos não leiam isto, não é metodologia que se aconselhe, muito menos que se mostre; espero também que o Gonçalo M. Tavares não passe por aqui, ele que já sabe todos os livros, e por que ordem, vai escrever e publicar até ao ano 2053!); idem para o Carmelo, que escreveu esta coisa bamburreante (não sei o que quer dizer mas acho-lhe piada e para o que é serve, além de também ser um “roubo”): “Escrever um romance é permanecer no seio de homologias resguardadas pela interpretação contingente e nunca definitiva.” Chiça!


Virgílio, por Cesariny

No Campo de Afectos - onde comecei isto - já tinha alguma coisita junta, como agora depois da trasladação aqui se pode ver. Hoje, recomeço a labuta. Para já, pedaços de um texto singular do Vitor Silva Tavares (sim, esse, o da & etc), sobre o Virgílio (revista Cadernos, nº 10, Almada, Setembro de 1995, entre as páginas 11 e 15. O texto do Vitor chama-se “O meu Virgílio”).

«Enfarpelado de funcionário-público modelo (seja: absentista à escala inversa do salário), dir-se-ia extraído dum conto de Gogol – roído de infortúnio, azamboado de sonhos – não fora nele o conhecimento da dor, a consciência das disciplinas da revolta e o contraponto de irrisão com que salgava iras e convicções.
Atravessa, horizontal e neurótico, a noite e nevoeiro do fascismo lusitano (...) “homem sem qualidades” pardo e constrangido (...).
A talvez infância de miúdo “remediado” (...), filho de ferroviário e de mãe a condizer, é-lhe fonte inextinguível de transfiguração poética (...): quando o nojo bate fundo, é ele-criança (...) que transmuta o sarro psicológico em questão política. (...)
Será entre estúrdias de desintegrados, de putas e poetas, que se vê comparsa da única ficção libertadora sonhada possível nos dias cinzentos da cidade: cu nas cadeiras dos cafés, fundir Marx e Rimbaud, comunismo e surrealismo, não por menos.
(...) entre dívidas muitas acumuladas e biscates de aflição (hora-extra de espinha curvada ao estirador, traduções de fraco poder alimentício), para o “já agora tanto faz” dos vícios menores, ódio engolido a rodadas de cerveja. No Inferno, claro (...).
(...) acusado de “desvio ferroviário” pelo grão-mestre do Abjeccionismo (Pedro Oom (...) que entendeu ler no Relógio de Cuco uma lamechice neo-realistona (...).
(...) toma partido prático, entrega-se humilde ao que pensa justo, solta-se orgulhoso no demais que é território dos meninos novos, também o dele (...).
Que força é essa, amigo? Onde vais buscar a música venosa, a reserva de alegria, a pulsão amorosa que te faz mover a mão sobre o papel da escrita? – Assumido “filho do povo”, assim mesmo em primário e tudo, é aos “filhos do povo”, à sua projecção mítica (...) que te diriges. Esse o amor, essa a alavanca. Com seu contraponto fantasmático em jeito de grotesco, medonho carnaval: a choldra de arganazes (...); o fascismo, atreva nas cabecinhas, a mão armada da “ordem”.
(...) emborrachamo-nos até à abstracção do fígado, embrulhamo-nos em intrigas de cueca e ciumeiras, trocamos dentes com os dentes do António Manaças, do Forte, da Aldina, da Lita, do Herberto, do Sampaio, do Dácio, tanto mais vagabundos celestes dos antros de perdição que era aonde se garantia alguma saúde, não obstante. (...) desbastávamos uma decadência a vários títulos postiça, guerrilheiros de uma guerrilha forçada a autofagia.
(...) Não crendo em espíritos iô-iô, imagino-o aqui à minha volta – seu rosto de puto amarfanhado, seus olhos paradoxais de claridade – a casquinar um riso não sei se de censura se daquela troça que serve para iludir pudores de tímido. Sei que de qualquer modo, e se ele em vida, o ouviria aplicar a súmula genial dos seus considerandos: troc-troc

segunda-feira, agosto 11, 2003

TRABALHOS 

Trabalho de casa.

Trabalho sobre os textos do Virgílio Martinho [ver posts de 20 e 25 de Junho] na companhia de W. Benjamin (Rua de sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900, Relógio d’Água, 1992):

«[...] a força de um texto diverge, conforma é lido ou transcrito. [...] somente quando copiado, o texto domina a alma do que sobre ele se debruça, ao passo que o simples leitor nunca chega a conhecer as novas perspectivas do seu íntimo [...]» [p. 43]

«Não há nada de mais pobre que uma verdade expressa tal como foi pensada. [...]» [p. 97]

«As citações, no meu trabalho, são como salteadores à beira do caminho, que irrompem armados e retiram ao passeante a sua convicção. [...]» [p. 98]

Trabalho de cópia.

«[...] Sei, escrevo hoje e invento-me, estou presente no emaranhado das coisas da memória. [...]»
[Relógio de cuco, p. 50]

«Eu amava o velho pai como quem amam uma coisa inventada, sem palavras nem carinhos. Via-o enorme, as pernas sempre a fugirem de mim, o corpo magro ligeiramente curvado e lá em cima e as fossas do seu nariz. E era esta e não outra a minha invenção de pai. Via-o e era o mesmo que sentir-me duas vezes, como sombra na parede ou imagem no espelho. Porque ele tinha um ar severo e grave, raramente me falava, nunca me beijava, só uma vez me atirou com a mona às pernas. Como um pai que não há. [...]»
[Relógio de cuco, p. 13]

ESTÁ ABERTA A ESCRITA PÚBLICA 

A minha peça Alquimia, baseada em textos ficcionais de Virgílio Martinho (1928-1994), está em processo de escrita. Espero agora receber opiniões e críticas (e-mail: camlisbon@yahoo.com). O texto do primeiro excerto já lido em público (cf. posts infra) pode ser aqui consultado. Fica também aqui a lista de textos utilizados; em alguns deles refiro a cota de catalogação da Biblioteca Nacional.
Obrigado.



Obras de ficção utilizadas na escrita da peça:
Orlando em Tríptico e Aventuras, Lisboa, Edição de Autor, 1961 (L. 52165 P.)
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1963
Festa Pública, in A Antologia em 58, Mário Cesariny (dir.), Lisboa, 1958 (L. 48459 P.)
Rainhas Cláudias ao Domingo, Fundão, Jornal do Fundão, 1972 (L. 76757 P.); reeditado por Contexto, Lisboa, 1982 (imp.)
Relógio de Cuco, Lisboa, Estampa, 1973 (869.0-3 MA,V(1) ) ou (L. 87757 P.)
A Caça, Porto, Afrontamento, 1974
O Grande Cidadão, Lisboa, Arcádia, 1976 (L. 55074 P.)
O Concerto das Buzinas, Lisboa, Seara Nova, 1979 (869.0-3 MA,V)
O Menino Novo, Lisboa, Edição de Autor, 1989 (L. 40536 V.)

UMA CENA DE ALQUIMIA 

Alquimia, de Carlos Alberto Machado { em construção - junho de 2003 }
Leitura pública de excerto da peça Alquimia, com os actores Vitor Soares, Carlos Oliveira e Sílvia Barbeiro, seguida de conversa. Na Livraria Eterno Retorno (ao Bairro Alto, em Lisboa), 21 de Junho de 2003 (22 Horas).

ALQUIMIA é um texto para teatro, de Carlos Alberto Machado, baseado em textos narrativos de Virgílio Martinho.



O presente excerto é uma adaptação de Rainhas Cláudias ao Domingo (Jornal do Fundão, 1972) e foi preparado para esta Leitura Pública.

Personagens: Virgílio/Narrador - Virgílio - Sofia

Sei, escrevo hoje e invento-me,
estou presente no emaranhado das coisas da memória.

Virgílio Martinho


VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela estava numa rua pouco iluminada. Miúda e enfiada, muito pálida. Parei e quis dizer-lhe mulher queda em sossego, doce fruto meu mas não disse. Disse-lhe
VIRGÍLIO: Tens uma cama?
SOFIA: Tenho, mas primeiro passa para cá a massa.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
A voz dela era uma voz de rapariga quente, soava no sítio certo, tinha formigas. Apertei-lhe as mãos e beijei-as.
SOFIA: Não me digas que és desses, dos bons?! Dos que se deitam em camas que lhes pertencem, e, oh, é sempre a mesma!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Eu mendigava um buraco no escuro nocturno. Mas estava ainda no silêncio.
SOFIA: Então?! Ganho a minha vida, ouviste? Ou julgas que vivo do ar?
VIRGÍLIO: Podíamos ser amigos.
SOFIA: Ora, amigos, se me passares a massinha seremos mais do que isso! Tás a ouvir?! Passo as minhas necessidades como toda a gente, ou tu julgas que isto é só gozo?
VIRGÍLIO: Não queres vir?
SOFIA: Andas à pesca duma que caia?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E as mãos dela debaixo dos meus sovacos e depois a descerem lentamente...
SOFIA: Chiça, até tremes!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Tremia, sim, tremia. Rouco e percorrido de certa moleza como vossas excelências quando vão prá cama com a vossa querida.
SOFIA: Se calhar tás a pensar na coisa à borla, é? Claro, é o costume, espatifaste a massa e agora queres a coisa por amor.
Sofia começa a andar.
VIRGÍLIO: Ouve...
SOFIA: Nunca te vi por aqui, de onde é que saíste?
VIRGÍLIO: De lado nenhum. Uma bebedeira, vim daí. Sabes, uma velha disse que eu precisava de mãe e apalpou-me entre a pernas, achas bem?
SOFIA: Ora! E antes da bebedeira?
Chegam às escadas de uma pensão.
VIRGÍLIO: Tenho andado por aí, sou um rapazinho.
SOFIA: Isso vejo eu. Quero saber é donde vieste, com quem lidas…
VIRGÍLIO: Merda de pergunta… não sei… da barriga da minha mãe… tá bem?
SOFIA: E o dinheirinho? E dinheiro, menino?
VIRGÍLIO: Uns trocos…
SOFIA: ... que nem pró quarto chegam...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Mas eu não a queria perder, não podia.
VIRGÍLIO: Se pudesses...
SOFIA: Posso. Passa para cá o dinheiro que tens.
Entram na pensão.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Virou-se para mim e encostou a boca ao meu coração e falou-me como quem diz um segredo grave.
SOFIA: Não digas a ninguém que vou contigo à borla, depois os outros aproveitam-se.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Já nem a ouvia, beijava-lhe o pescoço, comia-lhe os cabelos, sentia no nariz os pêlos do casacão dela, no queixo a anatomia magricela do seu rosto. Não conseguia falar, tremia de amor como nos acontece... E ela calma e divertida, tinha experiência destes anseios, deixava fazer...
SOFIA: Tou farta de ser enganada por tipos de falinhas mansas como tu. Tou, sabes?, umas vezes por querer, outras sem querer...
VIRGÍLIO: ... E não devias estar?
SOFIA: Claro que não devia estar, uma pessoa não faz isto por prazer!
VIRGÍLIO: Não faz?
SOFIA: Não, os homens é que fazem sempre, duas bombadas, já está!
Outro silêncio. Este grave.
SOFIA: Se tivesses dinheiro havias de ver o que a gente fazia...
VIRGÍLIO: E não tenho?
SOFIA: (Rindo-se) Não tens mas quase me furas de lado a lado.
Entram num quarto.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Nua parecia uma criança. Criança nas nádegas, criança nas linhas quase imperceptíveis dos quadris que se perdiam nas sombras dos sovacos. Os seus ossos da espinha podiam contar-se um a um.
VIRGÍLIO: Tinha o teu corpo por volta dos meus dez anos.
SOFIA: Com tudo o que tenho?
VIRGÍLIO: Com tudo não, sem as coisas de mulher que tens.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Ela ria-se e eu especado, ainda vestido. E ria também. As maminhas dela, que cabiam à vontade nas palmas das minhas mãos, tremelicavam com o riso.
SOFIA: Boneco!, mosquinha morta!, queres fazer a coisa vestido? Vá, anda, não vês que quero festejar? Não vês? (pausa) A tua inocência, passarinho!
VIRGÍLIO: Oh, a minha inocência, julgas que é a primeira vez?
SOFIA: (Goza com ele) Estou agarrada a ti quando tinhas dez anos e não sinto nada, não sinto nada. (pausa) É por eu ser assim magricelas que não queres?
VIRGÍLIO: Não sou inocente.
SOFIA: Eu sei, percebi logo!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E depois fizemos o que vossas excelências sabem que se faz.
VIRGÍLIO: Não queres outra vez? (silêncio) Gostava de ficar aqui contigo.
SOFIA: Não pode ser, já te fiz o gosto, agora c’est fini. (pausa) Gostaste de mim? (depois empurra-o, ele cai de costas na cama e ela ri, vai dizendo aos poucos, entre o arfar do riso) Sabes, se estivesse abonada tudo se resolvia.
VIRGÍLIO: Podes dizer ao dono disto que se paga depois.
SOFIA: Não digo, ele é um bicho, um aleijado, percebes? E os aleijados são maus, não gostam de ninguém. (silêncio) Queres ficar porque gostaste de mim ou porque tás estoirado?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Não lhe respondi; fiquei encostado à cabeceira da cama a esburacar o umbigo, talvez sem dar por isso.
SOFIA: Veste-te, então.
Saem do quarto. Está frio na rua.
SOFIA: Que mosca te mordeu?
VIRGÍLIO: Aquilo cheirava mal. Vamos para um jardim.
Sofia concorda, sem dizer nada. Vão para um pequeno jardim.
SOFIA: Eh!, vamos perder a noite, namorado, tá bem?
VIRGÍLIO: Tá bem! Vamos gozar tudo o que pudermos!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
E beijei-a.
SOFIA: Na rua, não.
VIRGÍLIO: Queria estar contigo.
SOFIA: Temos tempo, somos novinhos em folha.
VIRGÍLIO: (Com raiva) Somos agora novos, miúda!
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Porque de repente vi os anos todos, desde a mãe, desde o vagido inicial, e como lancetadas as chatices todas, uma a uma.
VIRGÍLO: Merda para isto! Falta-nos tudo!
SOFIA: (Sorrindo) Tu és um velho, eu sou centenária, pronto.
VIRGÍLIO: (Exaltado) Tá bem, tá bem.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Meti-lhe a mão pelo vestido dentro e deixei-a ficar no quente das mamas dela, e ela pôs a sua nas minhas partes, continuando como se nada fosse, as cabeças encostadas, imóveis ali, sérios, a noite uma cúpula indiferente lá no alto, as persianas fechadas, até que expeli mais uma vez as minhas viris humidades e o cheiro a semente fê-la suspirar.
SOFIA: Quem me dera ser homem, porque vocês deitam fora, libertam-se, enquanto nós, as rachas, acumulamos, somos caixotes...
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Até que também ela se elevou nos balidos de quem se vem no mundo, de quem usa o corpo!
VIRGÍLIO: Vens-te no mundo!
SOFIA: As vigilantes do asilo onde cresci batiam palmas a propósito de tudo, queres saber como? (e executa enquanto explica) para comermos uma vez, para irmos à retrete duas vezes, para dormirmos três vezes...
VIRGÍLIO: ... embora passar a noite no cais?
SOFIA: Tá bem.
Pontão de um cais.
VIRGÍLIO: Vou contar-te histórias.
SOFIA: Que histórias? Aquece-me.
VIRGÍLIO: Está um rosto no céu.
SOFIA: Onde? não vejo nada, só estrelas, e “as estrelas são pescadoras e andam à procura de gente”.
VIRGÍLIO: Um rosto ali, olha, nas nuvens, olha, os buracos dos olhos, os outros do nariz, o volume do queixo e... os malares e a testa. É um rosto para o sol entrar por ele quando nascer, ainda falta um pouco.
SOFIA: Tenho frio, aquece-me.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Aquecemo-nos mutuamente. Pernas a balançar no vazio, entre o líquido e o gasoso.
SOFIA: Aqui é o fim da terra, o começo do oceano.
VIRGÍLIO: E lá longe, muito longe, a viagem. (silêncio) Vais dormir? É quase dia.
SOFIA: (Resmunga).
VIRGÍLIO: O rosto desapareceu do céu, levou-o o vento da manhã, a primeira luz. (pausa) Cá estamos vivos.
SOFIA: (Resmunga de novo).
VIRGÍLIO: Estás gelada. Uma vida inteira aqui e ficávamos de pedra, sabes?, de pedra.
SOFIA: Quero o sol.
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Estava um “dia algodoado de nuvens marinhas”.
E passou um marinheiro a desejar o sol.
SOFIA: (Segreda) Marido, o povo acordou.
VIRGÍLIO: Tenho fome, e tu?
SOFIA: Somos crianças, sabes? E as massas para comer?
VIRGÍLIO: Pois, não há. Estás da cor da morte, miúda.
SOFIA: Queres ver como fico corada?
VIRGÍLIO/NARRADOR:
Despiu o casacão e ajoelhou-se no último degrau do pontão. Puxou as saias até ao ventre, curvada para as águas, nossa senhora a parir. Lavou o rosto. Contente, pela súbita comunhão de frio e renascimento. E eu voltei a olhá-la, atraído por aquele campo magnético que ela era.
SOFIA: Olhas-me como se eu fosse morrer!
VIRGÍLIO: E não vais?